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sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Paulo e a sexualidade dos romanos até os tempos do Novo Testamento


A epístola de São Paulo aos romanos abre com uma eloquente condenação das práticas sexuais daquela época. Segundo o apóstolo, a idolatria generalizada que era praticada nas diversas partes do Império Romano, fez com que Deus entregasse os homens de então “à imundície para desonrarem seus corpos entre si” (cf. Rm 1:24). Paulo prossegue na descrição do que classifica como “paixões infames” (v. 26): “suas mulheres mudaram o modo natural de suas relações íntimas, por outro contrário à natureza; semelhantemente, os homens também, deixando o contacto natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens com homens, e recebendo em si mesmos a merecida punição de seu erro” (vs. 26-27). Não obstante a descrição minuciosa que Paulo faz do quadro da sexualidade humana no Império Romano durante o período neotestamentário, certos estudiosos têm rejeitado a avaliação moral que o apóstolo faz de tal sexualidade, afirmando que ela é imprópria por não levar em consideração que os gregos e os romanos existiram numa época anterior à criação do conceito de sexualidade (HALPERING; WINKLER; ZEITLIN, 1990). A partir tanto da tradição anglo-americana da antropologia cultural quanto da tradição francesa das sciences humaines, Halpering, Winkler e Zeitlin exploram a iconografia, a política, a ética, a poesia e as práticas médicas que tornaram o sexo na Grécia Antiga não um paraíso da liberação mas um local exótico dificilmente reconhecível aos visitantes do mundo moderno.
            Além do fato de que uma análise da perspectiva que os classicistas têm desenvolvido sobre o conceito foucaultiano de sexualidade pode contribuir para uma melhor compreensão de por que a abordagem paulina da sexualidade romana tem sofrido ataques recentes por parte de teólogos liberais, uma outra razão há que justifica um estudo mais aprofundado do tema: sua novidade. Com efeito, a sexualidade é um tema novo para a discussão acadêmica entre os estudiosos da antiguidade clássica tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra. De acordo com Skinner (1997, p. 6), isso explica o fervor e o entusiasmo com que os classicistas entraram recentemente no debate. Nesse debate os estudiosos têm buscado uma resposta para a importante indagação: o conceito de sexualidade é uma invenção moderna ou não? Os classicistas formularam a pergunta de uma forma peculiar: pode-se falar de uma época em que não existia sexualidade? Há, de fato, uma época-anterior-à-sexualidade?
            O objetivo deste artigo é, portanto, verificar se é possível falar de uma época-anterior-à-sexualidade e, portanto, considerar se a interpretação tradicional segundo a qual Paulo condenou as práticas sexuais dos romanos de sua época deve ser abandonada pelos teólogos em favor de uma outra, mais liberal e menos dogmática, que abriria, inclusive, a possibilidade de uma maior tolerância para práticas sexuais menos heterodoxas por parte dos cristãos do séc. XXI. A ética sexual de Paulo, conforme apresentada no prólogo de sua epístola aos romanos, seria, então, uma questão de ótica? Estaria Paulo simplesmente condenando aquilo que não conheceria e, portanto, sendo injusto com o ambiente cultural do Império Romano insensível e indiferente a quais comportamentos seriam apropriados e quais seriam condenáveis uma vez que os romanos viveriam na ingenuidade de uma era anterior à existência da noção de sexualidade? A resposta tentativa a essa indagação é, provavelmente, que isso não seria possível porque mesmo em sua época os próprios romanos já teriam uma compreensão detalhada daquilo que era considerado sexualmente adequado e aquilo que deveria ser rejeitado como teratogênico. Este estudo pretende provar isso através do levantamento das práticas sexuais descritas pelos próprias romanos, mostrando como estes tinham a noção nítida do que era comportamento socialmente aceito e o que era teratogênico.

Roma Antes da Sexualidade

            A teoria totalizante da história da sexualidade proposta por Foucault sugere que a sexualidade é uma invenção moderna, uma forma de interpretar a experiência (e, portanto, um modo de a experimentar) que é apropriada a uma sociedade altamente diferenciada, industrializada e modernizada. De fato, a famosa obra de Foucault apresenta uma ambiciosa hipótese acerca tanto da sexualidade antiga quanto da sexualidade dos tempos modernos (LARMOUR; MILLER; PLATTER, 1997). No entanto, embora sua abordagem seja muito esclarecedora com respeito a uma compreensão das relações entre a sexualidade e o poder, sua tese implica em uma posição tão radical concernente à sexualidade que ela se torna difícil de suster. Este é o lado construtivo do debate classicista entre construtivistas e essencialistas (HABINEK, 1998, p. 25). A perspectiva essencialista, defendida por John Boswell, postula, por exemplo, que os romanos aceitavam a homossexualidade com entusiasmo (RICHLIN, 1993, p. 528; SKINNER, 2005). Foucault acredita que, com o advento de um regime victoriano, a sexualidade foi restringida e que, a partir dessa época, o sexo se tornou um objeto de administração, gerenciamento e governo, assim pressupondo que houve, na antiguidade, uma época-anterior-à-sexualidade.
            Foucault chegou a esse posicionamento após passar por duas fases em seu estudo da sexualidade. Ele dedicou a primeira fase de suas pesquisas ao período que abrange os séculos entre a morte de Cristo e o início da Idade Média. A segunda fase foi dedicada a uma análise dos textos greco-romanos e cristãos. Seguindo de perto as conclusões de Foucault, Winkler (1990, p. 17-44; 64-70) e Halperin (1990, p. 24-27), por exemplo, insistem que não havia um conceito fixo de tipos sexuais na antiguidade. Para Halperin (1990, p. 24), a sexualidade é uma invenção moderna. Richlin (1993, p. 528) disse muito bem que “o motivo que subjaz aos escritos de Halperin, e que também subjaz parcialmente aos de Winkler, é ativo: romper todas as restrições impostas à sexualidade pela própria cultura, declarando que não são inevitáveis, mas fabricadas histórica e socialmente. Sua preocupação faz eco à declaração de Don Milligan segundo a qual muitos construtivistas sociais pensam que “já que os seres humanos construíram a sexualidade, então ela pode ser desconstruída” (apud HABINEK, 1990, p. 24).
            Não obstante, apesar do esforçoes de Foucault para eliminar o conceito de sexualidade do mundo antigo, há algumas razões para uma rejeição de sua tese. Isso ocorre em duas linhas de pensamento. Em primeiro lugar, aquilo que Foucault considera como o elemento fundamental da sexualidade, está também presente em Roma. Em segundo lugar, há alguns elementos que, embora negligenciados por Foucault, parecem evidenciar que a sexualidade desempenhava um importante papel na antiga Roma – tal papel é análogo ao que ela desempenha na própria sociedade atual.

Evidência Contrária a uma Roma Antes da Sexualidade

            A ausência de uma terminologia da sexualidade e de conceitos que correspondam diretamente aos atuais, não pressupõe uma ausência de uma terminologia sexual ou mesmo de conceitos sexuais na antiga Roma. Winkler et al. compreendem a sexualidade como uma linguagem social usada para definir, descrever, interpretar e lidar com toda sorte de negociação – em suma, uma nova categoria. Eles aceitam a abordagem Foucaultiana que compreende a sexualidade como um discurso. Mas se, de fato, a sexualidade é uma forma de discurso, por outro lado, há também uma metalinguagem que descreve e define a sexualidade.
            A linguagem dos romanos estava impregnada com o elemento sexual (assim como a dos dias atuais). Eles mesmos eram capazes de descrever, com facilidade, o comportamento sexual que adotavam (ou que deveriam adotar) e eram ainda capazes de empregar metáforas sexuais para descrever outros aspectos da vida quotidiana. Assim, Marcial, por exemplo, aconselha que é impróprio à esposa oferecer sexo anal ao marido (12.96). Em sua esquematização rigidamente falocêntrica, os romanos empregavam três verbos distintos para a ação normativa de penetração em um orifício corporal pelo pênis. Segundo Parker (p. 48), Marcial 2.47 explicita as três ações sexuais ativas possíveis a um varão: futuere (o ato em que o homem insere o pênis na vagina de uma mulher), pedicare (inserção do pênis em um orifício anal) e irrumare(inserção do pênis na boca de uma pessoa).
            Expressões tais como os profanatum (“boca profanada”), usada por Quintiliano em uma provável referência ao estupro oral; clunem agitant (“balançam o rabo”), usada em Juvenal para sugerir a homossexualidade passiva; e publica via, usada por Plauto (Curcúlio 35-38) em referência àqueles passíveis de sofrer estupro legal; demonstram que os romanos, sem dúvida alguma, falavam acerca do sexo. Semelhantemente, as pessoas da época também expressavam sua opinião sobre a sexualidade de outrem como a pichação nos banheiros públicos atesta. Richlin (1993, p. 549) cita a seguinte frase, cuja tradução de teor excessivamente indecente não convém aqui:

Cosmus Equitaes magnus cinaedus et fellator est suris apertis (CIL 4.1825).

            Um outro aspecto patente da linguagem sexual romana é que ela dá conta da existência de comportamento sexuais que se desviam do padrão comum: cunnilinctor (uma referência ao homem usado sexualmente por uma mulher), cinaedus ou pathicus (referências usuais ao homossexual passivo), fellator (designação do homem que é a parte passiva durante o sexo oral), viragotribas ou moecha (designação da mulher lásbica). Os romanos não apenas falam de sua própria sexualidade como são também capazes de identificar as formas que consideram teratogênicas.
            Se, então, os romanos estavam cientes quanto aos diferentes aspectos de sua sexualidade, como podemos nós negá-la? Melhor que falar acerca de uma Roma-antes-da-sexualidade, é dizer que a sexualidade romana era organizada – ou talvez percebida – de formas diferentes dos padrões que estão presentes na sociedade moderna. A identidade sexual, por exemplo, estava tão bem estabelecida entre os romanos que Richlin (1993, p. 531) pode afirmar com segurança: “as definições corriqueiras da identidade sexual dos romanos permaneceram consistentes por um período superior a quatrocentos anos (de 200 aC a 200 AD), desde o final da República até o Alto Império. Roma apresentava um mapeamento da sexualidade que Skinner (1997, p. 4) crê era uma parte de uma visão pan-Mediterrânea mais ampla, mas que, não obstante, incluía certas modificações. Contudo, os protocolos romanos “de gênero e de sexo eram suficientemente distintos dos protocolos da Grécia clássica e helenista para merecerem o tratamento da sexualidade romana como um sistema independente” (SKINNER, 1997, p. 8).

A Presença de uma Administração Foucaultiana da Sexualidade em Roma

            Foucault e seus seguidores vinculam o princípio da sexualidade a sua organização como uma instituição social, um princípio rotulador universal que situa e controla indivíduos (HALPERIN; WINKLER; ZEITLIN, 1990). Se isso é, de fato, uma definição correta de sexualidade, então pode-se argumentar que a sexualidade já estava visivelmente presente em Roma. A sociedade Romana dispunha de tantas restrições ao comportamento sexual de um indivíduo quanto a moderna sociedade ocidental (e talvez ainda mais). Vários fatores sugerem isso.
            Em primeiro lugar, pode-se afirmar, com confiança, que a sociedade de Roma dispunha de costumes bem estabelecidos diretamente relacionados às práticas sociais. Amy Richlin menciona alguns desses costumes em seu artigo contra a visão foucaultiana. Uma noiva deveria cortar o cabelo dos amantes do homem com o qual se casara recentemente a fim de encerrar sua atratividade sobre ele (cf. Marcial 3.58.31; 12.97.4; 12.49.1; Petrônio, Satyricon 27.1, 29.3, 34.4, 63.3, 70.8, 97.2). De fato, o termo latino pueri faz referência aos rapazotes que orbitavam ao redor de um varão maduro e que, muitas vezes, o satisfaziam sexualmente. Em outra circunstância, uma prostituta experiente era chamada para participar do ritual de iniciação no qual o menino se tornava homem (vir). Aí, uma inspeção física da genitália do rapaz era recomendada antes que o menino pudesse ser considerado maior de idade. Da mesma forma, havia conotações patentemente sexuais na cerimônia denominada depositio barba, a primeira vez em que o rapaz cortava a barba (assim encerrando sua própria atratividade pederástica).
            Destarte, a sociedade romana dispunha de artifícios populares que serviam para regular a sexualidade. Uma cultura de temas sexuais é onipresente na metrópole. Assim, as famílias preocupavam-se com a castidade de seus rapazes (cf. Plínio, Epistula 3.3.4; 7.24.3). Havia certo preconceito contra o uso de roupas efeminadas e espalhafatosas (Guélio 1.5; 6.12; Sêneca, Epistula 114), ou roupas de certas cores, especialmente verde claro ou azul celeste (Marcial 3.82.5; Juvenal 2.97). Atitudes aparentemente inofensivas eram estereotipadas como evidência de homossexualidade passiva: coçar a cabeça com o dedo (Juvenal 9.133; Sêneca Epistula 52.12; Luciano, Rhetoron Didaskalos 11; Plutarco, Pompeu 48.7); mãos nos quadris (Juvenal 6.O.24); depilação e dança (Macróbio Saturnalia 3.14.4-8), cacoetes e impedimentos de linguagem (Marcial 10.65.10; Pérsio 1.17-18, 35; Quintiliano 2.5.10-12; Juvenal 2.111). A homossexualidade passiva era tratada como doença e, contra ela, toda sorte de simpatia era receitada (Plínio, Historia naturalis 28.106; Juvenal 2.15-22, 50, 78-81). Palidez excessiva era considerada como sintoma de se ter participado em sexo oral e, portanto, não se devia beijar ou partilhar os talheres de uma pessoa pálida (cf. RICHLIN, 1993, p. 550-552).
            Além disso, a sociedade romana contava com uma retórica da condenação sexual. Suetônio cita a declaração de Cúrio de que César era “o marido de toda mulher e a mulher de todo marido.” Ele também descreve as preferências sexuais de outros romanos eminentes: Cláudio, Augusto, Galba, Nero, Calígula, Nerva, Domiciano, etc. De forma semelhante, Cícero acusa Clódio de homossexualismo passivo adulto (Har. Resp. 42). Uma retórica da sexualidade era muito importante em Roma uma vez que o sexo “se relacionava intimamente com as questões de legitimidade, de alianças entre clãs e dos privilégios masculinos” (HABINEK, 1998, p. 27).
            A sociedade da época contava com rituais religiosos a fim de regular o comportamento sexual, como é o caso de se convocar um haruspex (um experiente intérprete de presságios como relâmpagos, pássaros, etc.) para expurgar a impureza sexual de uma pessoa (cf. Juvenal 2.121). A verdade é que a literatura romana era um meio de se moldar uma certa perspectiva social do sexo que, por sua vez, era um meio de se moldar a literatura romana. A versão ovidiana da carreira amorosa de Safo, por exemplo, implica que “o homoerotismo feminino” seria “uma conduta perversa radicalmente em conflito com a natureza” (SKINNER, 1997, p. 21).
            A sociedade romana chegou a exercer um controle oficial sobre o comportamento sexual. Chegou-se a criar uma legislação específica concernente à conduta sexual, como, por exemplo, a Lei Escantínia (que regulamentava a penetração sexual) e a Lei Júlia (que fez do adultério um crime e regulamentou o assassínio da mulher e de seu amante em flagrante delicto). Isso é ainda mais relevante se compreendermos que a legislação romana era marcadamente baseada no costume. Os primeiros legisladores romanos foram os pontífices, que eram a autoridade máxima de uma lei não escrita. A primeira mudança drástica ocorreu depois do conflito entre patrícios e plebeus quando os plebeus exigiram a codificação de leis. Daí surgiram as chamadas Doze Tábuas, mas a lei sagrada continua sob a alçada dos pontífices e não se mistura com a lei civil, pois os romanos não se dispunham a alterar aquilo que consideravam como tendo sido estabelecido pelos deuses. O costume influencia na interpretação da lei; a lei pode não se referir a ele, mas, em última instância, é o costume que funciona como elemento norteador (WATSON, 1995).
Além disso, pretores e censores exerciam uma cuidadosa vigilância com respeito ao comportamento sexual. Aqueles que eram considerados infames eram susceptíveis de incorrer em penas severas: restrição quanto aos cargos públicos por ele ocupados, remoção do album iudicum (a lista de homens que podiam ser indicados para a função de jurado em um processo jurídico), expulsão do exército e da corte. Os infamespodiam, ainda por cima, se tornar intestabiles, perdendo o direito de testemunhar em um processo de testamento ou, até mesmo, de fazer o seu próprio testamento. David Cohen (apud HABINEK, 1998, p. 28-29) argumenta que “a legislação moral augustana” foi nada mais do que uma “apropriação massiça e deliberada, por parte do estado, de uma nova esfera regulamentar: o casamento, o divórcio e a sexualidade.” Tal legislação teve o efeito de retirar a conduta sexual do contexto familiar e a transferir para a esfera pública.
            A conclusão inevitável é de que os romanos não existiram antes da criação da sexualidade. De fato, “um homem, em sua vida pública, estava sob constante ataque” (PARKER). As restrições sociais sobre o sexo (conquanto diferentes) operavam naquela época conforme operam hoje.

Qual é o Sentido Mais Saliente da “Sexualidade”?

            A sexualidade romana era multifacetada. É, por essa razão, melhor falarmos em termos de sexualidades romanas, como o fazem Hallet e Skinner (1997). Entretanto, uma característica permanece como válida para todos os seus aspectos: a sexualidade é socialmente relevante. Esse é talvez a marca mais conspícua da sexualidade humana e é justamente isso que aproxima todas as nossas sexualidades. Só cabem duas alternativas, aqui: ou dizemos que não havia uma Roma-antes-da-sexualidade ou, então, teremos que encontrar uma nova definicão para a sexualidade na sociedade atual. A sexualidade romana e a moderna sexualidade ocidental são duas facetas de um mesmo fenômeno socialmente construído e inexoravelmente determinado por forças sociais e biológicas.      Com efeito, a principal objeção à abordagem foucaultiana, aqui, não é que a sexualidade seja socialmente construída, mas que tal construção social possa ser deliberada e conscientemente conduzida.

Conclusão: Houve, Então, uma Roma Depois da Sexualidade?

            A sexualidade não é um fenômeno homogêneo nem uniforme. A sexualidade não permanece a mesma por um período longo – e às vezes nem mesmo em um período curto. Isso explica por que ela é percebida de modos distintos por pessoas diferentes. Isso acontece, às vezes, mesmo dentro de culturas aparentemente semelhantes. Um exemplo disso ocorreu com os rabinos do período greco-romano. Os rabinos da Palestina tinham perspectivas que se assemelhavam mais às da elite greco-romana do que às dos rabinos babilônicos (SATLOW, 1998, p. 135-144). Habinek (1998, p. 27-28) mostra, por exemplo, que enquanto Catulo entendia o sexo como parte de uma rede de relações políticas, econômicas, regionais e afetivas, Ovídio tinha uma visão inteiramente diferente. Psicologias individuais distintas e contextos sociais diferentes explicam essa divergência.
            A sexualidade humana sempre esteve em fluxo. As mudanças observadas na conduta sexual do homem através dos séculos levam alguns estudiosos a supor que houve um tempo em que a sexualidade não existia. Chega-se a prever que haverá um tempo em que a sexualidade deixará de existir. A sugestão, aqui, é que a explicação que Miligan dá para sua deficiência de perceber a operação da sexualidade no mundo antigo também serve para dar conta da razão por que muitos não conseguem perceber o papel a ser desempenhado pela sexualidade em sociedades futuras. Redes de forças sociais têm sido responsáveis pela articulação da sexualidade em diferentes sociedades e não há razão para que se suponha que tais redes tornar-se-ão obsoletas. A sexualidade humana será diferente em sociedades futuras, mas persistirá.
Por outro lado, pode-se dizer que houve uma Roma-depois-da-sexualidade? Isto é, houve um tempo quando os romanos se tornaram cientes de sua sexualidade e, portanto, engendraram tal conceito em sua sociedade? Qual teria sido o agente responsável pela criação de tal conceito? a legislação moral de Augusto? os discursos moralizantes de Cícero e Catão? Impossível de dizer! Esses esforços e tentativas de tornar um tipo de moralidade a norma para o cidadão comum não foram, de fato, rupturas com a tradição. Não se trata da invenção da sexualidade, mas apenas de sua manipulação a fim de se privilegiar uma certa ideologia e torná-la prevalente. Quanto à questão que indaga se os romanos criaram a sexualidade, pode-se dizer que não a criaram, mas que lhe acresceram gostos e preferências. Os romanos não criaram a sexualidade – o que eles criaram foi a sexualidade romana.

HABINEK, Thomas. The invention of sexuality in the world-city of Rome. In: HABINEK, Thomas; SCHIESARO, Alessandro. The Roman cultural revolution, 1998.

HALPERIN, David. One hundred years of homosexuality. New York: 1990.

HALPERING, David; WINKLER, John J.; ZEITLIN, Froma I. (Eds.). Before sexuality: the construction of erotic experience in the ancient Greek world, 1990.

LARMOUR, David H. J.; MILLER, Paul Allen; PLATTER, Charles (Eds.). Rethinking sexuality: Foucault and classical antiquity, 1997.

PARKER, Holt N. The teratogenic grid. In: HALLET; SKINNER (Eds.). Roman sexualities.

RICHLIN, Amy. Not before homosexuality: the materiality of the cinaedus and the Roman law against love between men. The Journal of the History of Sexuality, n. 3, 1993.

SATLOW, Michael L. Rhetoric and assumptions: Romans and rabbis on sex. In: GOODMAN, Martin (Ed.). Jews in a Graeco-Roman world. Oxford: Clarendon, 1998.

SKINNER, Marilyn B. In: HALLET, Judith P.; SKINNER, Marylin B. (Eds.). Roman sexualities, 1997.

__________. Sexuality in Greek and Roman culture. Oxford: Blackwell, 2005.

WATSON, Alan. The spirit of Roman law. Athens: 1995.

WINKLER, John J. The constraints of desireNew York: 1990.

Artigo publicado originalmente em: TORRES, Milton L. A sexualidade romana até os tempos do Novo Testamento, Revista Teológica, Cachoeira, BA, v. 4, n. 2, p. 22-29, 2000.

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