[Meus comentários (Hendrickson Rogers) estão entre colchetes!]
O uso incorreto dos
escritos de Ellen White tem dado origem a muitas lendas e mitos adventistas. A
maneira como isso ocorre é semelhante à brincadeira do telefone sem fio. Você
sabe como é o jogo, a simples frase “Maria foi nadar na piscina” torna-se no fim
da roda em “Azarias não jogou nada na latrina”. Quando trabalhei como Assistente
de Pesquisas no Centro White, Unasp-2, publiquei um artigo na Revista
Adventista (“Revisão de Arquivo” RA,
Abril de 1995) em que abordei algumas dessas citações “apócrifas” do Espírito
de Profecia, e mais recentemente no artigo “Órion e os Eventos Finais”.
Tenho aprendido que o problema não está com certas declarações de Ellen White e
sim com a maneira em que seus escritos são lidos, descontextualizados e
abusados. Uma das interpretações que tem se
tornado quase proverbial em nosso meio é a idéia de que Lúcifer era “regente do
coro celeste”. A idéia é baseada na seguinte citação de Ellen White:
“Satanás tinha dirigido o coro
celestial. Tinha ferido a primeira nota; então todo o exército angelical
havia-se unido a ele, e gloriosos acordes musicais haviam ressoado através do
Céu em honra a Deus e Seu amado Filho. Mas agora, em vez de suaves notas
musicais, palavras de discórdia e ira caíam aos ouvidos do grande líder
rebelde.” (História da
Redenção, 25).
Primeiramente, é importante
ressaltar que a revelação Bíblica, a luz maior, em nenhum momento retrata
Lúcifer como regente do coro celeste [embora ele e a música apareçam relacionados na Palavra! Cf. Is 14:11, "som da tua harpa"]. Isso já seria razão suficiente para
sermos cautelosos ao fazer afirmações categóricas sobre as atividades de
Lúcifer no céu antes de sua queda.
Mas alguns textos bíblicos são
usados para provar a idéia de que Satanás era músico; veja Ezequiel 28:13-15:
“Estiveste no Éden, jardim de
Deus; cobrias-te de toda pedra preciosa: a cornalina, o topázio, o ônix, a
crisólita, o berilo, o jaspe, a safira, a granada, a esmeralda e o ouro. Em ti
se faziam os teus tambores e os teus pífaros; no dia em que foste criado foram
preparados. Eu te coloquei com o querubim da guarda; estiveste sobre o monte santo
de Deus; andaste no meio das pedras afogueadas. Perfeito eras nos teus
caminhos, desde o dia em que foste criado, até que em ti se achou iniqüidade.”
A passagem acima faz parte de um
juízo proferido sobre o rei de Tiro, portanto, a intenção original de Ezequiel [ôps, a "palavra" era do profeta ou de "JAVÉ"? Ez 28:1. A intenção de JAVÉ é dupla claramente! Ou o "rei de Tiro" estava no "Éden"?] não é tratar de Lúcifer em seu estado não caído e por isso, precisamos
respeitar o contexto. Mesmo que haja certos paralelos entre a altivez do rei de
Tiro e Lúcifer, a linguagem não trata deles de forma literal. Por exemplo,
porque o texto trata de instrumentos musicais, alguns concluem que isso se
refere ao dom musical de Lúcifer no céu, enquanto outros até vêem aí uma prova
de que havia “tambores” no céu. Não é bem assim que se faz exegese, a linguagem
aqui é poética, simbólica e metafórica e o hebraico é de difícil tradução e
inconclusivo ao falar de instrumentos, é necessária cautela. Podemos, no entanto, aplicar os
princípios da queda do rei de Tiro como símbolo da queda de Lúcifer, já que há
alguns paralelos óbvios, tais como “eras o selo da perfeição, cheio de
sabedoria e perfeito em formosura” (v. 12). Mas ao mesmo tempo em que há
paralelos, há também disparidades entre os dois personagens que nos impedem de
criar um paralelo literal entre cada elemento do texto de Ezequiel com Lúcifer.
Assim, tentar literalizar a passagem de Ezequiel nos traz dificuldades já que
se Lúcifer era músico e tocava “tambores e pífaros” (v. 13) no céu, então ele
também era coberto de jóias preciosas literalmente, se engajou em “comércio” lá
(v. 16, 18), profanou os seus próprios “santuários” (v. 18) e Deus o expulsou
em direção à “terra” (que supostamente ainda não havia sido criada!) e o expôs
perante “reis” (v. 16, 17). O disparate exegético deveria ser óbvio.
Concluir, portanto, que Lúcifer
era regente do coro celestial ou até mesmo músico celeste com base nos
instrumentos citados na passagem de Ezequiel é forçar o texto bíblico. Isso não
quer dizer necessariamente que Lúcifer não era músico no céu, a Bíblia contém
muitas cenas de louvor oferecido pelos anjos a Deus. Mas querer precisar que
função Lúcifer tinha no céu é ir além da revelação.
O outro texto citado é Jó 38:4-7,
que mostra que fala do “coro celestial”:
“Onde estavas tu, quando eu
lançava os fundamentos da terra? ... quando juntas cantavam as estrelas da
manhã, e todos os filhos de Deus bradavam de júbilo?”
O texto pode estar se referindo a
um coro de anjos cantando nas eras sem fim da eternidade, mas não trata de
Lúcifer em específico. Acima de tudo, assim como Ezequiel, o texto de Jó é
poético e simbólico. É interessante notar que a idéia
de que Lúcifer tivera posição de líder dos anjos não é original de Ellen White.
Esse conceito parece ter se tornado parte da tradição cristã e era idéia comum
para alguns autores no tempo de Ellen White.[1] Ela estaria apenas refletindo
uma idéia periférica da sua época neste ponto (como fez em muitos outros[2])
para expressar um ponto mais importante sobre a atuação de Lúcifer. [Por outro lado, a própria Bíblia deixa claro a liderança exercida pelo Lúcifer mudado, o Diabo, ainda lá no Céu, cf. Ap 12:7.]
Com esse breve pano de fundo
bíblico e histórico, voltemos então à passagem de Ellen White. Uma leitura mais
cuidadosa da passagem indica que Ellen White não pretendeu fazer uma declaração
sobre a posição de regente musical de Lúcifer. Ela escreveu que “Satanás tinha
dirigido o coro celestial. Tinha ferido a primeira nota,” o que expressa uma
ação pontiliar [pontual, certo??] num passado distante e não uma ação constante necessariamente.
Note que a conclusão que Satanás tinha a posição estabelecida de “regente do
coro” não está no texto. Essa nuance é importante para o entendimento da
intenção de Ellen White.
Ela claramente não está
fazendo uma declaração sobre a função de músico de Lúcifer ou como a música é
executada nas cortes celestiais, mas está ressaltando sua posição em relação
aos anjos: ele era o anjo mais exaltado, tinha primazia em termos de criação e
função.
Lúcifer é retratado aqui como
aquele que, dentre os anjos, primeiro sentiu em seu coração o desejo de louvar
a Deus, ele iniciou o louvor, feriu a "primeira nota" e os anjos
seguiram. Assim, a metáfora da música celestial é usada por Ellen White para
criar um forte contraste entre a submissão de Lúcifer a Deus ao alçar louvores
a Ele e a rebelião que começava a surgir em seu coração através da discórida [discórdia...] e
desarmonia. Veja que ela continua dizendo “Mas agora, em vez de suaves
notas musicais, palavras de discórdia e ira caíam aos ouvidos do grande líder
rebelde.” Aqui Lúcifer abandonara o desejo de louvar a Deus. Dessa
forma, a metáfora musical é usada para fins primordialmente homiléticos, para
expressar um ponto mais importante, a saber, a exaltação de Lúcifer perante os
anjos e sua repentina queda.
Além da precariedade do argumento
do ponto de vista bíblico e o fato de que Ellen White não disse que Satanás era
"regente" do coro celeste, a idéia de que Lúcifer tinha esse função
específica também esbarra em problemas lógicos. O primeiro deles é o tamanho do
coro celeste; se houvesse mesmo a necessidade de um regente, deveria haver
milhares de sub-regentes para um coro de milhares, milhões ou bilhões de anjos,
como ocorre com grandes corais aqui. O problema é que a necessidade de um
regente nos moldes de um diretor de coral terrestre fere o conceito bíblico de
que os anjos são perfeitos em todos os sentidos e superiores ao homem (Salmo
8:5; Heb 2:7). Por quê? Anjos perfeitos em poder não devem
necessitar de um regente que indique o compasso, mudanças de dinâmica,
cadência, rallentandos, pianissimos ou mezzo fortes, se é que a música celeste
sequer pode ser descrita nos moldes terrestres! [Discordo. A Bíblia apresenta sim o conceito de funções e até ordens angélicas tanto quanto a ideia de perfeição desses majestosos seres superiores aos pecadores: "príncipes", Dn 10:13; "arcanjo" (anjo chefe) Jd 9. Perfeição não exige uniformidade! Deus ama a diversidade e Ele mesmo, JAVÉ trino, apresenta as Três Pessoas divinas com funções e até ordens distintas, obviamente devido as funções e não à natureza divina! Cf. Jo 14:28]
Nem mesmo deve ser necessário que
alguém lhes dê a “primeira nota” nos padrões de um regente terrestre, como se
os anjos precisassem disso para se manterem no tom. Existem seres humanos que
possuem o que chamamos de “ouvido absoluto”, ou seja, não precisam que ninguém
lhes toque ao piano ou sopre num diapasão um Dó ou Fá, eles ouvem a nota
automaticamente em seu ouvido e cantam no tom. Quanto mais os anjos que foram
criados de forma superior ao homem! E até mesmo em nossa esfera decaída, há
muito coral profissional por aí que não necessita de regente. Creio que deu
para entender os problemas com uma leitura rígida da passagem em questão. [Penso que aqui o autor confundiu perfeição com presença de todos os dons e talentos do Senhor Espírito! Um anjo não caído continua sendo perfeito mesmo alguns dons não se achando presentes em seu caráter. Esse sentido de perfeição=plenitude só é devido a Jesus (Deus)! Cf. Cl 1:19]
Se Lúcifer era ou não
"regente do coro celestial" é irrelevante, já que ele não caiu de sua
elevada posição por rebelião ao governo de Deus por questões
musicais. Assim, devemos ler a passagem sobre Lúcifer e o coro celeste
mais por sua força retórica sobre a exaltação e subsequente queda de Lúcifer, e
não como uma declaração de qual função musical ele exercia no céu ou como é
realizada a música celeste.
Cabe aqui também uma
palavra de exortação. Infelizmente a intenção de muitos que usam a passagem de
Satanás como suposto “regente do coro celeste” é quase sempre demonizar
(literalmente) a música sacra contemporânea. Ouvem-se afirmações do tipo
“Satanás é músico, temos que ter cuidado com avanços na música adventista.”
Assim, cria-se um espantalho ao redor da música adventista para coibir, oprimir
e ostracizar músicos. Nossos músicos não têm liberdade para trabalhar porque
sempre correm o risco de se tornar culpados por associação com Lúcifer, o
músico par excellence, o “regente do coro celeste”. [Mas também pelo fato de uma fatia dos ditos músicos só fazerem isso na Igreja e nada mais! Não demonstram intimidade com a Bíblia, com a missão, apresentam um conhecimento bíblico raquítico e até mal se sentam nas cadeiras que não estão na plataforma! Cantam e passeiam...]
Com certeza Satanás deve ter um vasto conhecimento da música celeste e bem como
da terrestre, mas ele não foi originador da música, Deus o é. Não entreguemos a
Satanás algo que pertence a Deus, o dom da música, e não façamos os músicos da
Igreja culpados por associação porque um suposto “regente do coro celeste” caiu
em rebelião. [Satanás não criou nada a não ser o mal! E dentro desse mal estão os pseudo-músicos adventistas e outros cuja vida não é um "sacrifício de louvor" a Deus! Cf. Hb 13:15 e Lv 22:29]
E, ironicamente, Satanás sempre
alcança seu objetivo de espalhar desarmonia na igreja quando, no afã de evitar
o complexo do “regente Lúcifer”, caímos em extremos na questão da música sacra,
julgando a intenção dos nossos irmãos, impondo nossas idéias pessoais do que
Deus aceita ou não ("Se eu não gosto, Deus não gosta também"),
criticando e condenando.
No fim das contas, o maior
problema dos músicos e adoradores adventistas não é tanto “musical” e sim
“relacional”, seja no relacionamento com Deus ou com nosso próximo, como foi
para Lúcifer. Cultive relacionamentos saudáveis na questão da música sacra para
não cair no mesmo problema daquele anjo caído.
______________________________
[1] Veja, por exemplo, John Milton, Paradise Lost
(Londres: 1674), Livro IV, 600-605; ibid., Livro VII, 130; Daniel Defoe, The
Political History of the Devil (1726), p. 49, ibid., The Life
and Adventures of Robinson Crusoe (1800), p. 119, Emily
Percival, The Token of Friendship(1852), que usa linguagem bem
semelhante à de Ellen White: “Lúcifer pode haver sido o líder daquele coro
celeste” (p. 26).
[2] Como por exemplo, 6.000 anos para a idade da terra, idéia comum no século
19 hoje questionada por cientistas criacionistas e arqueólogos Adventistas. A
história da civilização humana tem pouco mais de 6.000 anos, talvez 10.000.
Ellen White nunca procurou estabelecer a idade da terra, ela usou o cômputo
para ressaltar um ponto mais importante, a saber, a longa odisséia do pecado na
terra.
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