Sexto século antes de Cristo. O grande império mundial da época, Babilônia, ergue-se altivamente diante das demais civilizações. Chegara o seu momento histórico de glória. Regado pelos rios Tigre e Eufrates, ostenta riqueza, força, conhecimento e o esplendor opaco do orgulho humano que, sonhando ser perene, termina por se desintegrar no esquecimento. Elevada à posição de “rainha da Ásia” e embelezada pela magnificência de seus jardins suspensos (maravilha do mundo antigo), a nação mesopotâmica – “cabeça de ouro” - escraviza seus conquistados, inconsciente de que toda conquista humana é tão efêmera quanto o orvalho que cedo aparece mas logo se dissipa.
Como vítima principal do cativeiro babilônico encontra-se Judá, cidade-emblema da adoração monoteísta ao Deus que adentra no tempo e na História para Se fazer revelar em amor (e em juízo) a todos os povos. Judá, olvidando sua missão de nação representante do Deus vivo, quebra o concerto da graça e aliena-se da fonte de sua segurança. Para quem tinha como destino ser cabeça, e não cauda, a escravidão sob uma nação pagã é a triste sorte do povo escolhido. Do povo escravizado, o Ser divino escolheu o jovem Daniel para revelar uma das profecias mais interessantes e abarcantes da Bíblia: a decifração do significado de uma estranha estátua metálica e de uma pedra meteórica, apresentadas certa noite no sonho perturbador do rei. Daniel, cujo nome significa “Deus é meu Juiz”, tornou-se na corte mesopotâmica o profeta da História e dos tempos distantes, o porta-voz apocalíptico do juízo e do propósito divino para com todos os seres. O cativo de Judá, auxiliado pelo Altíssimo, fez o que nenhum dos magos e astrólogos da corte conseguiu: relatou e explicou a mensagem oculta. O sonho, na verdade, constituía uma visão - “as visões da tua cabeça”, conforme o profeta declarou ao rei.
Nabucodonosor ficou intrigado. E o homem do presente, a quem o sonho igualmente alcança, não deixa também de se espantar. O relato de Daniel 2 é uma profecia, retratada em ricos símbolos, que inicia com Babilônia para se prolongar até o “fim dos dias”. Nesse episódio, as ciências ocultas revelaram-se (como de fato são) um completo fracasso. Elas não puderam nem dizer o sonho nem interpretá-lo. Por serem cegas, não definem o real problema; consequentemente não têm solução a apresentar. Pela ilusão que carregam consigo, incompetência em trazer respostas e alívio e pela frustração que causam, as ciências ocultas só são dignas de uma coisa: a sentença de morte. Se o Deus de Daniel não tivesse interferido na situação, o resultado seria a morte literal para os magos ocultistas e, por extensão, ao profeta hebreu e seus companheiros (Dan. 2:5, 12, 13). A decifração do mistério, no entanto, trouxe salvação aos dois grupos. Daniel e Nabucodonosor bem podem representar, respectivamente, a igreja de Deus e o mundo, para os quais a mensagem divina está endereçada. A lição é clara: escolhidos e gentios são convidados a participar do “mistério que esteve oculto durante séculos e gerações”, mas que “Deus quis fazer conhecer quais são as riquezas da glória deste mistério entre os gentios, que é Cristo em vós, esperança da glória” (Colossenses 1:26, 27). A igreja não é somente portadora de um relato; torna-se também o veículo escolhido da interpretação, ou o “profeta” a iluminar os sonhos misteriosos e indecifráveis da humanidade. Em outras palavras, com o mundo está o anseio irrespondível, as visões perturbadoras; com a igreja, mediante o Altíssimo, a resposta iluminadora. A forma da estátua era provavelmente a de um homem eminente ou de uma divindade feita à semelhança dos homens. No sonho do monarca, ela era grande, de esplendor excelente e de aparência terrível. Representa o lado ameaçador e jactancioso da raça humana, bem como o aspecto “terrível” de cada pessoa em particular. No plano geral, a estátua simboliza o sonho humano de governar, alheio ao governo divino todo-abarcante; no plano particular bem pode indicar o homem que tenta ser grande para estabelecer um reino em si, independente de Deus. Ela permanece fixa e imóvel no solo do mundo, pisando o próprio planeta numa atitude de domínio autodestruidor, recusando a transcendência e olvidando o fato de que o reino não se restringe à Terra, este mero átomo no Universo. Entretanto, embora grande e altiva, a estátua está inconsciente do verdadeiro poder expresso pela Pedra.
A imagem do sonho de Nabucodonosor, aparentemente um corpo único, está dividida. É híbrida na sua essência, bem representativa da humanidade. Os metais constitutivos do ídolo caracterizam sua natureza autoconflitante. Mais: denotam poder civilizatório progressivamente decadente e expressam as separações construídas pelo homem, impeditivas da genuína união universal. Substancialmente separados, os metais, todavia, permanecem ligados para formar a estátua, estabelecendo uma coligação de forças. Inimigos entre si, estão, não obstante, unidos contra o poder da Pedra. Cada metal, na passagem dos séculos, vai dando lugar ao outro, embora não sem resistência. Rendição não faz parte dos planos da estátua. A Pedra, ao contrário, possui natureza una, indivisível e definida, símbolo da pureza de um reinado universal. A Pedra é um Homem (Salmo 118:22; Zacarias 4:7; Mateus 16:18; 21:42; Atos 4:11, 1 Pedro 2:4, 8), o representante legítimo da humanidade, sobre os ombros do qual está o governo do mundo (Isaías 9:6). Diferente da estátua, Ele não possui natureza dividida. NEle o divino e o humano combinam-se perfeitamente (João 1:14), em pacífica aliança. Ouro, prata, bronze e ferro: cada metal da estátua a seguir seu precedente é inferior. O poder humano está se desvanecendo na passagem dos séculos, embora aparente uma ilusória força. Os pés do ídolo já não são metal puro, e sim uma mistura de ferro com barro, denotando a debilidade e o iminente fracasso da civilização atual. O poderio tecnológico, a força pensante expressa na filosofia, o avanço e a arrogância do cientificismo, a suposta espiritualidade – elementos condensados nas grandes conquistas tão proclamadas pela raça – apresentam a aparência de ferro, mas estão fragilizados pela argila. O mundo moderno faz-se de forte e resistente como o duro metal; contudo é evidente a sua fraqueza, especialmente nos campos moral e espiritual. As tentativas de melhora e união, nestes últimos dias, vêm resultando em fracassos contínuos. O homem, pobre barro, procura reafirmar-se sem Deus, esquecendo-se de que “tu és pó e em pó te tornarás” (Gênesis 3:19). O barro nos pés da imperiosa estátua indica a falência do gênero humano, caso opte pela separação do Criador.
O divino surge das alturas e vem ao encontro do humano. Mas nesse encontro a Pedra aparece para destruir a altivez e o poder despótico da estátua. Inesperadamente, ela surge do Céu (Mateus 24:30, João 3:16, 1 Tessalonicenses 4:16), sem o auxílio de mãos humanas. Em constante movimento, viaja por todos os domínios do espaço infinito, passando por mundos inimagináveis e preparando-se para chegar ao planeta azul. Repentinamente, cai sobre os pés da grande imagem, ferindo-a na sua fragilidade, nas suas bases, e destruindo-a completamente. Os pés sofrem ataque sem aviso, sendo esmiuçados. A estabilidade foi-se. Imediatamente o poder do Céu toma o planeta na figura de um grande monte, e o lugar ocupado pela imensa imagem é assumido pela Pedra, o verdadeiro e seguro fundamento do mundo. Daniel conclui a revelação com uma nota de certeza que produziu em Nabucodonosor profunda convicção: “Certo é o sonho, e fiel a sua interpretação” (Daniel 2:45). A estátua e a Pedra sempre se mantiveram em contraste. São forças em conflito a demandar adoração. A primeira tenta atrair pela beleza, esplendor e pela riqueza de seu material - os atrativos meramente externos da forma. Para existir, depende de mãos humanas. A segunda aparece “sem o auxílio de mãos” (Daniel 2:34) e deseja nos cativar pela segurança, permanência e fortaleza que constituem a adoração verdadeira, eterna e indestrutível. Os cristãos que aprenderam a ver na profecia a concepção bíblica da História contemplam algo mais que o homem secular; vislumbram a representação de uma mensagem celestial, profundamente significativa.
O sonho transmite alguns recados. Três deles evidenciam-se: (1) a transcendência, imperceptível ao homem cético, sempre esteve presente na imanência: o eterno invade o temporal (presente, passado e futuro) e participa dos negócios das nações. Deus Se preocupa conosco; (2) há forças visíveis e invisíveis travando um conflito contra o estabelecimento do reino divino; (3) a vida, retratada na história da humanidade, não é um “conto narrado por um idiota, cheio de som e fúria, significando nada” (Shakespeare) ou uma “agitação feroz e sem finalidade”, como afirmou ilustre poeta brasileiro; tampouco uma narrativa já traçada fatidicamente pelo destino. É uma epopeia de liberdade em que o triunfo da verdade, da justiça e do amor se torna uma questão de tempo, um tempo longo e sofrido, mas que finalizará quando a vitória da Pedra sobre a estátua for consumada. Somos avisados do encontro futuro, decisivo e drástico entre imanência e transcendência, tal qual a queda de um asteroide sobre o mundo. Cremos nós, os viventes dos “últimos dias”, na visão?
No presente, na Terra “metalicamente” dividida, as nações do mundo, sejam poderosas ou não, lutam em combate para ver qual ficará em ascensão. Entre o ouro da cabeça da estátua e a Pedra que inaugurará o reino do Altíssimo, estamos nós. Nesse intervalo histórico nossas escolhas definem nosso destino. Assim, em face do sonho profético dado a toda a humanidade, resta a cada indivíduo posicionar-se diante da Pedra. Só existem duas opções: ou cairemos sobre ela e nos despedaçaremos em arrependimento ou a Rocha dos Séculos cairá sobre nós e nos esmiuçará. O desejo de Deus é o melhor. Qual será o nosso? Nabucodonosor “caiu com o rosto em terra” (Daniel 2:46) e reconheceu a grandeza e o poder do Altíssimo. O humilde gesto real foi a mais sábia e realista escolha. Expressaremos a mesma atitude ou nos manteremos arrogantemente erguidos?
“Certamente cedo venho” – é o aviso da Pedra.
Fonte: Frank de Souza.
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